Do Ponto ao Pixel – Livro

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Restam poucas dúvidas que a nossa civilização “ocidental” é optocêntrica. Quer dizer que muitas das relações que mantém as nossas sociedades “civilizadas” são do domínio do visual. As imagens técnicas sobrepõem-se a todas as outras formas de comunicação em número e função. Mesmo a escrita, aparentemente uma simbolização do sonoro, da nossa linguagem verbal, é, ainda assim, uma simbolização visual que também, provavelmente, simboliza palavras cujos conceitos têm, na sua maioria, correspondência visual. A notação musical parece ser também um exemplo a ter em conta, precisamente porque os seus símbolos se organizam de uma forma visual “imitando” subidas e descidas, ritmos etc. Também a matemática, esse magma de ideias puras se socorre de símbolos de carácter visual. Nunca saberemos o que seria hoje da matemática se a aritmética não tivesse adoptado a numeração árabe e o seu magnífico desenho de números, diferente das letras romanas. No entanto, tanto a escrita, a notação musical ou a simbolização matemática, embora do domínio do visual, cedem em importância à preponderância da imagem analógica (já lá iremos, à sua relação com o digital) nos nossos tempos. A Alegoria da Caverna, parte da República de Platão, mito fundador da civilização optocêntrica ocidental, escrita há mais de 2000 anos, ressoa nas nossas mentes ainda hoje, não porque simbolize o engano das pessoas acerca dos sistemas políticos, ou o triste destino daqueles que se rebelam e descobrem a verdade verdadeira, ou mesmo porque nos elucida sobre as essências puras, mas sim porque o dispositivo descrito por Platão é muito semelhante ao cinema…

 

Nem a forma de diversão mais popular do século XX foi o salão de cadeiras de massagens, nem a alegoria da caverna se socorre de criaturas a fazer cócegas aos pobres agrilhoados. Para obter os efeitos da sua panfletária alegoria, Platão usou a visão e não os outros sentidos, obtendo uma ressonância nos nossos tempos que nem ele poderia imaginar. O uso das expressões ressonância e imaginação não são inocentes. Nem sempre nos lembramos de que Platão não via televisão, não ia ao cinema, não consultava o Google, seleccionando apenas imagens ou vídeos, nem usava o skype para conversar com quem quer que seja. Nem sequer tinha visto ainda um único livro, com ilustrações ou sem elas. Da pintura dos gregos conhecemos muito poucos exemplares. Mas, mesmo assim, essa deveria ser sufi cientemente expressiva para Platão lhe lançar um anátema como arte imitativa (espero que o leitor observe a ironia nesta expressão). A história das artes visuais no ocidente veio a dar-lhe razão. Sobretudo depois da “invenção” da perspectiva por Filippo Brunelleschi, da sua codificação geométrica por Leon Batista Alberti e de toda a evolução de pintura e desenho, que desaguou na fotografia e na imagem em movimento. A visualidade persistiu nossa civilização em formas sofisticadas de ilusão (que o nosso autor irá chamar de fantasmagorias), resultantes da nossa predisposição para a cognição através da visualidade, como para dela se alimentar. E, a propósito… se vivemos num mundo em que as pessoas fotografam a comida antes de comer, está tudo dito… Ou não. Richard Perassi é doutor, docente universitário, investigador, grande conversador e filósofo. Propõe-se a recuperar o conhecimento desenvolvido especialmente no século XX sobre o domínio do visual e as suas formas comunicativas.

 

Do ponto ao pixel recupera o processo analítico que visa entender as coisas até às suas unidades mínimas constituintes. Ou seja, para a análise de qualquer coisa teremos que indagar primeiramente se ela é una, divisível ou se é apenas uma aparência de coisa, sendo por isso constituída por várias outras coisas. A fragmentação em pixéis ou pontos resulta deste vício analítico de busca da unidade elementar que, em múltiplas reconfigurações, povoa o nosso mundo de entendimento e cognição. Perassi recopila a teoria da percepção visual do século XX, para nos relembrar que toda a imagem é passível de leitura e que todo o texto é passível de apreciação estética. Que ambos, enfim, fazem parte do vasto processo da visualização da inteligência, que leva os humanos a produzirem imagens técnicas. Neste domínio é importante entender como as imagens analógicas participam de regras semelhantes das imagens esquemáticas ou simbólicas. Não é que as primeiras não sejam como as segundas (esquemáticas e simbólicas), mas aquilo que nelas predomina é o seu carácter analógico e não abstracto. Esta dualidade não tem nada a ver com o digital onde coexistem imagens analógicas (em números incomensuráveis hoje) e imagens simbólicas (em geral pouco entendidas como imagens). Do Ponto ao Pixel é, assim, equivalente a “do ponto ao ponto” num mundo em que existem pixéis. As teorias da percepção não distinguem imagens técnicas de imagens naturais. Do ponto de vista metodológico, isto faz sentido. Quando estamos a verificar a existência de processos que nos permitem fazer sentido do que vemos seria importante verificar se eles são independentes de outros factores, para além das circunstâncias.

 

Sabemos que é impossível destacar completamente esse processo da história, da cultura e do contexto. Mas, como ponto de partida para uma possível teoria, temos que admitir esse ponto zero da cognição visual. Partindo desse “nadir”, poderemos construir uma teoria geral da visualização onde naturalmente entrarão todas as imagens técnicas, considerando sua forma, funções e objectivos, por comparação com as imagens naturais (com a fisiologia a psicologia da visão) e por comparação com todos os significados “cegos”, os conteúdos puros. Nesse sentido, Richard Perassi oferece o seu contributo para essa imensa tarefa colectiva da construção de uma teoria geral da visualização, com uma inigualável clareza e inquestionável utilidade. Lisboa, Junho de 2015.

 

Eduardo Côrte-Real

Supervisor de Estágio Pós-doutoral IADE-U.

 

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